Transição,
para a Leitura em Prosa,
de um Quádruplo quarteto
Prof. Sousa Nunes*
QUARTETOS DO SONO
(Vianney Mesquita)
Não queiras ser amigo do sono para que a pobreza não te oprima. (BÍBLIA. Provérbios, 20,13.)
Senil sono soez, razão pretexta [ê],
Vetusta sorna cujo uso apresta
Segunda e terça e quarta e quinta e sexta,
Em cama, rede ou estrado bate a sesta.
No sabatino, ainda, o quase autista,
Desidioso e tardo, se contrasta
No concernente ao abstencionista
Averso ao tempo que aqueloutro gasta.
No domingo, inclusive, não malgasta -
Conquanto a aleia camarada insista -
O tempo em modorras dessa casta,
A fim de ignavos se omitir da lista.
Tranquila ideação a estória ilustra
Pois bom emprego temporal se exorta
E ao preguiçoso renitente frustra
Por não querer adentrar esta porta.
Análise Crítica de Quartetos do Sono
Introdução
A descodificação do conjunto rimado Quartetos do Sono constitui um exercício de reflexão moral e estética, inspirado na advertência bíblica contida em Provérbios 20:13: “Não queiras ser amigo do sono para que a pobreza não te oprima”. A conjunção decassílaba portuguesa, aqui em 16 pés, denuncia a preguiça e a negligência como inimigas do bom emprego do tempo, utilizando uma linguagem densa, carregada de sonoridade e ritmo.
O escrito perfaz uma aula de artesania poética, onde aliterações, polissíndetos e variações vocálicas (a, e, i, o, u) são empregados com intencionalidade, produzindo um jogo sonoro que reforça o sentido do poema.
Título e Tema
O título, Quartetos do Sono, evidencia o foco da versificação: crítica à preguiça e ao desperdício do tempo, que se manifesta como uma “sorna” (indolência) ou um “sono senil”. A palavra quartetos é insinuante, pois, sobre indicar a estrutura métrica das quatro estrofes, sugestiona a repetição cíclica da preguiça, que parece se perpetuar ao extenso da semana (“segunda e terça e quarta e quinta e sexta”).
A matéria fulcral é a aplicação sábia do tempo, contraposto ao vício da modorra e ao desleixo, que impedem a produtividade e a energia da vida.
Linguagem e Estilo
O poema do árcade novo Jovem Khrónos, imortal da Arcádia Nova Palmaciana, Academia Cearense de Literatura e Jornalismo e da Academia Cearense da Língua Portuguesa exibe um vocabulário erudito e pouco frequente – “sorna”, “ignavos”, “modorras”, “aleia” – exigindo do leitor uma atenção que ultrapassa a leitura superficial.
Há um trabalho consciente com os sons e a musicalidade, explorando as vogais e suas aberturas. No primeiro quarteto, por exemplo, a alternância do “e” aberto e fechado em “pretexta” e “apresta” confere um jogo fonético de grande sofisticação. Nos versos seguintes, o poeta distribui outras vogais dominantes: o “i” aparece em “autista”, “lista” e “abstencionista”; o “o” em “exorta” e “porta”; e o “u” em “ilustra” e “frustra”. Esse trabalho vocálico reforça a unidade sonora e rítmica do complexo poético.
Figuras e Tropos de Linguagem
1 Aliteração. O primeiro verso – “Senil sono soez, razão pretexta” – já inicia com uma vigorosa aliteração em s, evocando o som da sibilância e sugerindo uma atmosfera preguiçosa, de desatenção.
2 Polissíndeto. “Segunda e terça e quarta e quinta e sexta” é um exemplo claro, com a repetição do “e” reforçando a sensação de monotonia e de tempo arrastado.
3 Metáfora. O sono é descrito como “senil” e “soez”, características humanas projetadas sobre o conceito de preguiça, como se esta fosse uma entidade degenerada.
4 Personificação. A “aleia camarada” que “insiste” representa o ambiente externo (talvez o convite ao lazer), personificado como um agente ativo que tenta desviar o preguiçoso do bom uso do tempo.
5 Antítese. A oposição entre o “bom emprego temporal” e a “modorra dessa casta” reforça o caráter moralizante da mensagem.
Estrutura Argumentativa
Primeiro quarteto. O escritor de Palmácia-CE inicia com uma caracterização crítica do sono como algo vil, “senil” e “soez”, que se prolonga durante toda a semana, ilustrada pelo polissíndeto (“segunda e terça e quarta e quinta e sexta”).
Segundo quarteto. Aqui, há um contraste entre o preguiçoso (“quase autista”) e o indivíduo ativo, “abstencionista” no sentido de evitar o desperdício de tempo.
Terceiro quarteto. No sábado e domingo, mesmo diante do convite do lazer (“aleia camarada”), quem valoriza o tempo não o “malgasta” em modorras, preferindo empregá-lo de maneira produtiva.
Quarto quarteto. O poema encerra-se com um ensinamento moral, exaltando a “tranquila ideação” e o “bom emprego temporal” como modos de evitar a pobreza, retomando a advertência bíblica.
Tonalidade Crítica e Filosófica
O tom é de advertência e reprovação, mas também de exortação ao trabalho e ao uso responsável do tempo. A junção poemática sob comento mistura uma reflexão filosófica sobre a preguiça com um artesanato verbal de altíssimo nível, que transforma a crítica moral em poesia sonora.
Conclusão
Quartetos do Sono reúne 16 pés de rara riqueza sonora e lexical, que alia a tradição moral (inspirada na Bíblia) a uma técnica poética refinada, marcada por aliterações, polissíndetos e um jogo de vogais meticulosamente calculado. O texto convida o leitor a uma dupla reflexão: acerca do valor do tempo e relativamente ao poder da linguagem cuidadosamente trabalhada.
A advertência bíblica funde-se à estética poética, fazendo do soneto não um mero exercício de moralidade, mas também um exemplo de como o formato (ritmo, som, estrutura) é suscetível de reforçar a mensagem.