ENCRUZILHADAS
DA HISTÓRIA
Parte II
Rui Martinho Rodrigues*
Morte ou continuidade da civilização ocidental
Conforme dito no início deste ensaio, civilizações nascem, crescem,
fenecem e morrem, conforme constatou Arnold Toynbee (1879 – 1975), na obra Um Estudo da História. As transformações históricas, que ocorrem sempre,
podem, alguns casos, representar o fim de um período e o início de outro. Tal
mudança pode ser (1) o início de um novo período sem significar o fim de
uma civilização ou pode ser (2) a sua morte e o nascimento de outra.
A
contribuição dos gregos para a formação da civilização ocidental sofre o ataque
da chamada dialética negativa, segundo a qual tudo é manipulação do poder,
sendo a razão, seja indutiva ou dedutiva, serva do poder, de modo análogo ao
argumento retórico dos sofistas. Isso é a negação da razão que, segundo Oliver Nay
(1968 – vivo) na obra História das Ideias Políticas, substituiu o uso da
força quando os gregos resolveram adotar o debate de propostas e votação, no
processo decisório.
Caso prevaleça a
negação da razão, restará a força como processo decisório na arena política,
não só nas relações internacionais, como na própria ordem interna dos estados
nacionais. É preciso saber se isso está acontecendo. Há um processo de transformação
em curso. Qual será o seu desfecho é especular sobre o futuro, que é
inescrutável. Podemos analisar a marcha dos acontecimentos até o momento
presente.
O Direito vive um momento de fortalecimento da chamada Nova
Hermenêutica constitucional, que representa uma grande mudança na
interpretação e aplicação do Direito, amparada pelas novas constituições que
pretendem ir além do Estado Social, concretizando o “Estado democrático de
Direito”, conforme Carlos Simões, na obra Teoria & Crítica dos Direitos Sociais (O Estado social e o Estado Democrático de Direito). Estas novas
cartas políticas vão além daquelas que eram classificadas como constituições
analíticas, sendo nomeadas como totais, diretivas, programáticas ou dirigentes.
A nova Hermenêutica Constitucional e as constituições dirigentes
As constituições
programáticas, diretivas, dirigentes ou totais têm normas que representam
obrigações de fazer. Tanto particulares como o Estado é assim obrigado a fazer
algumas tarefas definidas no corpo constitucional. A classificação
“programática” não teria exigibilidade, quando tais constituições foram
discutidas e votadas, configurando tarefas que na prática seriam meras
intenções. Depois surgiu o argumento de que os textos constitucionais não podem
conter palavras ociosas. Assim, o que era promessa sem exigibilidade, passou a
configurar, quando não cumpridas, inconstitucionalidade por omissão.
As promessas programáticas foram transformadas em obrigação de
fazer, dotadas de exigibilidade. Surgiu até um instrumento de “cobrança”: a Ação
Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a ser proposta no STF, em sede
de controle concentrado de constitucionalidade. Isso teve, entre outros, os
seguintes efeitos: (a) submeteu o legislador do futuro aos ditames da maioria
ocasional da Assembleia constituinte originária ou até do legislador
constituinte derivado ou autorizado via Projeto de Emenda Constitucional (PEC);
(b) deu ao STF poder sobre o Executivo e o Legislativo, pois a
concretização do conteúdo programático da Carta Magna é, necessariamente, uma
ação da competência de um desses Poderes ou de ambos.
A “omissão”, seja do Legislativo ou do Executivo, deveria
ser, conforme as constituições sintéticas do passado, uma legítima decisão
sobre a conveniência e a oportunidade de concretização de um desígnio. As
constituições sintéticas diziam basicamente (c) qual a forma de
organização do Estado e (d) quais as seriam garantias individuais,
normas que configuravam obrigação de não fazer, que não trazem nenhum ônus e
que não ensejam reivindicação de poder para viabilizar o seu cumprimento.
As constituições dirigentes, programáticas ou totais passaram a
dizer como resolver problemas práticos no campo social, político,
econômico e jurídico. Sucede, todavia, que a solução de tais problemas
configura obrigação de fazer, que têm caráter oneroso. Obrigações desta
ordem precisam, para adquirir viabilidade, dizer (e) quanto custam e (f)
qual a fonte de recursos. A reserva do possível afasta toda obrigação de
fazer que não responda satisfatoriamente a estas duas questões, mas não tem
sido levada em consideração. Resultado: déficit fiscal, dívida pública
crescente, jurus altos e toda uma série de problemas. Adotamos o Estado do
bem-estar antes de sermos um país desenvolvido.
A baixa produtividade agrava a tendência para o desequilíbrio
fiscal, que nos países desenvolvidos é mitigada pela elevada produtividade da
economia. Tudo isso originou a Nova Hermenêutica Constitucional, que consiste
em indiferenciar a interpretação da lei com a realização da justiça, sem
obedecer os limites semânticos da norma escrita, com o auxílio da positivação
dos princípios gerais do Direito pelas constituições dirigentes.
A
interpretação do direito foi substituída pela “concreção”, que é alegadamente a
transposição da norma abstrata para a suposta singularidade do caso concreto em
julgamento, ao arrepio da sabedoria salomônica segundo a qual “o que foi, isso
é o que há de ser, o que se fez, isso se tornará a fazer, de modo que nada há
de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1; 9).
As constituições diretivas e a positivação de princípios
As constituições diretivas positivaram os princípios gerais do
Direito. Estes sempre foram considerados, mas só eram usados para dirimir
questões processuais quando houvesse lacuna na lei em sentido amplo. Era assim
porque a conformidade entre tais princípios e a normatividade social vigente
era definida pelo Legislativo, valendo-se da legitimidade dos representantes
eleitos pelo povo, de onde emana todo o poder.
Agora a “concreção” e a
positivação, que colocou os princípios gerais do direito na primeira linha da
fundamentação que ampara o dispositivo normativo das sentenças, têm natureza
principiológica. Princípios são uma espécie normativa caracteriza pelas
inúmeras hipóteses de incidência. Enquanto as regras são normas que só podem
incidir em uma situação prevista, a exemplo do limite de 60KM/h, os princípios
são normas abertas à subjetividade do intérprete, a exemplo de “não dirigir
perigosamente”.
A Nova Hermenêutica, invocando (i) a superioridade da Carta
Política, (ii) a concreção, (iii) os princípios gerais do Direito
positivados na Constituição e (iv) a “inconstitucionalidade por
omissão”, (v) valendo-se do controle concentrado de constitucionalidade,
(vi) transformou tudo em questão constitucional e deu ao STF um poder
absoluto, acima dos demais poderes. Estado Democrático de Direito não é o
Estado de Direito do Estado Liberal, nem mesmo do Estado Social, mas um Estado
de Direitos, no plural, que universaliza todos os direitos, sem se preocupar
com o custo nem com a fonte de recursos, em franco desprezo pela reserva do
possível.
O Direito invocado pelo Estado Democrático de Direito não se refere
aos direitos e garantias individuais, porque é um desdobramento da tradição que
optou pela precedência do coletivo sobre o individual, situação que acaba por
aniquilar os direitos e garantias individuais.